Terapeutrides,

Monica Costa Netto
23 min readNov 11, 2020

--

as mulheres entre os Terapeutas

Terapeutas (Therapeutai) é o nome de uma comunidade religiosa com raízes no judaísmo alexandrino, de cunho contemplativo, místico e monástico, que teria chegado a ter adeptos espalhados pelo Egito no início da era cristã. Não se sabe quando surgiram, mas eles provavelmente desapareceram com o massacre dos judeus do Egito, durante segunda guerra judaico-romana (115–117 d.C.)[1]. Essa guerra, travada em resposta às rebeliões ocorridas sob Trajano, teve consequências particularmente severas para os judeus do Egito, dadas as tensões e hostilidades em Alexandria, desde a conquista romana, entre as diferentes comunidades helenizadas, sobretudo entre “gregos” e judeus.

Os Terapeutas teriam sido contemporâneos dos Essênios, outra seita judaica. Mas, se a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto (1947), cuja autoria os estudiosos concordaram em atribuir aos Essênios, veio comprovar a existência dessa comunidade rigorista, antes conhecida apenas através de menções por autores antigos, no que concerne aos Terapeutas, continuamos a ter apenas um testemunho indireto. Com efeito, foi através de Fílon de Alexandria, prolífico autor judeu helenizado, conhecido pela sua tentativa de síntese entre a tradição judaica e a filosofia grega, que os Terapeutas, ao lado dos Essênios, entraram para a história. E, em particular, tomaram lugar na história do cristianismo, por meio de comentários ulteriores da Patrística a partir de Fílon. Pois, além de algumas poucas indicações em outros textos seus, Fílon escreveu um pequeno tratado dedicado exclusivamente ao modo de vida desses filósofos, como ele os chama, conhecido por seu título latino: De Vita contemplativa[2].

Fílon pertencia a uma família rica, com acesso à cidadania romana, o que estava longe de ser o caso para a maioria dos judeus do Egito. Diz-se que conhecia mal o hebreu e que se servia da Septuaginta para os seus estudos da Torah. Foi um homem ativo politicamente, agindo em prol de sua comunidade, e um autor eclético, segundo os padrões alexandrinos da época, com certo pendor para o platonismo e o estoicismo. Mas, ainda que impregnado de cultura grega e escrevendo em grego, esforçava-se para demonstrar o valor de sua tradição mosaica. Ele teria tido amigos na principal comunidade desse grupo de devotos, localizada à beira do lago Mareótis perto de Alexandria, onde fazia retiros, e tinha os Terapeutas em altíssima estima. Tanto é assim, que em seu tratado pretende demonstrar o quanto e como os monges Terapeutas ultrapassavam os filósofos gregos, por sua devoção ao deus de Israel, suas Leis, sua doutrina, sua moral, seu modo de vida, enfim, realizando plenamente um ideal de sabedoria.

O lago Mareótis atualmente (foto) tem águas salobras, mas no séc. I suas águas eram doces. Foram os ingleses, no séc. XIX, que provocaram uma catástrofe ecológica no local, com a abertura de um canal que fez o mar inundar o lago, vários povoados no seu entorno foram destruídos.

No entanto, as ênfases apologéticas e idealizantes das descrições de Fílon dos “melhores entre os Israelitas do Egito”, confrontadas à falta de provas quanto à existência concreta da comunidade, limitada a uma existência literária, levaram vários autores, como Ernest Renan no início do século XX, a postular um caráter puramente alegórico para os Terapeutas. Ou seja, eles teriam sido ficcionados por Fílon, ele mesmo partidário das interpretações alegóricas das Escrituras, para ilustrar seu ideal greco-hebreu de vida contemplativa. Hoje em dia, contudo, diante das evidências encontradas nas cavernas de Qumran, na Palestina, no que diz respeito aos Essênios, mas também graças a outras indicações, tais que geográficas, os estudiosos tendem a validar a historicidade dos Terapeutas, com as reservas cabíveis.

A curiosa denominação da comunidade é explicitada pelo próprio Fílon conjugando os dois sentidos do termo grego therapeutés — θεραπευτές designa o servidor de um deus, aquele que adora e presta culto a um deus, e também, aquele que presta um cuidado a alguém, em particular, quem prodiga cuidados aos doentes, um curandeiro, um médico (θεραπεύειν : servir, cuidar, curar). Assim, Fílon dirá que a terapêutica de que se trata entre eles é superior àquela que se encontra normalmente nas cidades, porque, esta, só se ocupa do corpo e a deles também cuida da alma (psyché). Pois as almas também sofrem de penosas doenças difíceis de curar, provocadas pelos prazeres, desejos, tristezas e uma infinidade de outras paixões e misérias que as atormentam. Mas ainda, diz Fílon, chamam-se assim, “porque eles receberam uma educação, conforme à natureza e às santas leis, ao culto do Ser (therapeuein to on) que é melhor que o bem, mais puro que o um, mais primordial que a mônada.” (§2).

A comunidade de terapeutas da alma descrita por Fílon não era formada por padres, não tinha clero constituído e se dedicava inteiramente à contemplação (theôria). Ingressavam na vida contemplativa (βίος θεωρητικός), retirando-se da vida civil, deixando para trás bens materiais e familiares, arrebatados pelo amor celeste, tomados por um genuíno entusiasmo (que Fílon compara ao das bacantes e dos coribantes) por uma vida imortal e abençoada, para, numa ascese voluntária, se dedicaram completamente ao serviço de Yhvh. Se evadem das cidades e evitam o convívio com as pessoas do mundo que decidiram abandonar, não por uma misantropia acerba, mas para buscar as condições ideias para o que almejam. Orações diárias ao nascer e ao pôr do sol, jejuns diários, meditações e estudos das Escrituras (dais quais, como Fílon, também faziam interpretações alegóricas) compunham a rotina de intensos trabalhos espirituais dos Terapeutas. Tal intensidade, segundo o autor alexandrino, não raro culminava em visões oníricas sagradas ou ainda em discursos religiosos feitos durante o sono: “muitos deles falam durante o sono e recebem nos sonhos a revelação dos mais altos ensinamentos da ciência sagrada.” (§26) Ou seja, misticismo e profetismo, também faziam parte da vida da comunidade.

Fílon, com efeito, inicia o tratado comparando expressamente o modo de vida dos Terapeutas com o dos Essênios, sobre os quais menciona ter escrito anteriormente — comparação que pode ser remetida a uma separação dos modos de vida cara à tradição filosófica grega que ele tematiza em outro texto[3]. Porque, se ambos buscavam a paz, o repouso, a tranquilidade (hêsychía) que convém à santidade, os Essênios admitiam ainda alguma vida ativa (ho praktikos bios), na medida em que precisavam assegurar a autarquia da comunidade exclusivamente masculina que formavam. Praticavam, segundo a classificação de Fílon, uma espécie de via média, intermediária entre uma vida dissoluta, tragada pelas preocupações do mundo, e uma vida de sabedoria e elevação, seguiam o caminho digno do “homem que progride.” Já os Terapeutas se situariam no caminho superior, mais puro, radical e exigente da contemplação de Yhvh. Mas ele dirá mais adiante que os Terapeutas não apenas contemplavam, tinham uma outra atividade igualmente voltada para adoração, eram poetas: “eles não se dedicam apenas à contemplação, eles também compõem hinos e cânticos em louvor de Deus, o metro e a melodia variam, mas eles os adaptam, como convém, a um ritmo grave.” (§29) Por isso Fílon os compara com as cigarras, pois dizem que elas se alimentam de orvalho e, supõe ele, enganam a fome com seus cantos.

É bem verdade que se ele chega a sugerir que os Terapeutas realizavam o ideal de uma comunidade igualitária e perfeita de filósofos, Fílon não explica como eles faziam para se manterem materialmente. O que também contribuiu para a incredulidade quanto à sua existência concreta. Sem dúvida, Fílon explica que o local escolhido, nas colinas próximas ao lago, era particularmente propício ao rigoroso retiro do grupo, por justamente apresentar um clima ameno e são. Ainda assim, os Terapeutas não eram plantas! Poderíamos supor que os devotos anacoretas eram pessoas mais velhas e que membros mais jovens da comunidade se ocupassem das demais tarefas. E é possível que algo assim acontecesse, com a ressalva feita por Fílon de que “os mais velhos”, entre eles, eram aqueles que seguiam há mais tempo tal modo de vida, portanto, não eram necessariamente idosos de cabeça branca. De resto, aliás, essa escala de tempo e progresso na vida contemplativa da comunidade era aparentemente a única diferenciação e hierarquia observada na constituição igualitária do grupo. Consta também que, antes de ingressarem na comunidade, deviam se desfazer de seus bens distribuindo-os entre seus próximos, com isso, é possível que recebessem deles alguma assistência depois, para a manutenção de seu modo de vida, descrito como muito simples.

Uma das particularidades da comunidade dos Terapeutas, em confronto com a misoginia tanto dos rabinos quanto dos Essênios, e que nos interessa em especial, era a presença das mulheres em seu seio: as Therapeutrides (feminino plural de therapeutés). A partir do momento em que se comprometiam com mesmo modo de vida celibatário e contemplativo, aparentemente, não havia empecilhos para a adesão feminina. Como veremos adiante, essa inclusão das mulheres não implicava numa negação de seu pertencimento ao gênero feminino, num apagamento genérico, mas passava por uma negação voluntária e deliberada, comum aos dois gêneros, da sexualidade. Abdicar do desejo sexual, do casamento e da procriação fazia parte do conjunto das renúncias a uma vida mundana e do processo de purificação do ser que visa elevar-se à comunhão divina. No entanto, vale lembrar que, no contexto da religião judaica, “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (Gênesis 1.28), são palavras sagradas, portanto, evitar o casamento, que teria como principal finalidade a procriação, pode ser considerado uma falta grave, um pecado contra a “natureza” (physis), no sentido mesmo em que Fílon utiliza o termo grego para se referir ao conjunto da criação.

As Terapeutrides e seus homólogos Terapeutas, todavia, formavam uma comunidade suis generis. Todos viviam isolados como eremitas no interior de pequenas casas individuais, mais ou menos afastadas umas das outras, espaçadas o suficiente para não haver incômodo entre vizinhos e poderem prestar-se auxílio mútuo se preciso. A pequena casa tinha dois aposentos: um para comer e dormir e um “santuário” (semneion), para orar e se “dedicar aos mistérios da vida sagrada”, que Fílon chama ainda de monasterion — lembrando que monachós, em grego, quer dizer precisamente: sozinho, isolado, celibatário. Aliás, a novidade do emprego deste termo por Fílon terá, em seguida, consequências sobre o imaginário cristão, para o qual os Terapeutas de Fílon tenderão a aparecer como os precursores da tradição monástica cristã, principalmente por esta ter surgido também no baixo Egito alguns séculos mais tarde.

Além disso, uma história, hoje totalmente desacreditada, que Eusébio de Cesareia (séc. IV d.C.) conta de ouvir dizer, segundo a qual os Terapeutas teriam sido os primeiros cristãos convertidos pelo evangelista Marcos no Egito, fez correr muita tinta sobre a verdadeira identidade do grupo. Ao ponto de, com a Reforma, católicos e protestantes disputarem também quanto a esse aspecto. De fato, os protestantes, descartando a vida monástica, estavam totalmente convencidos da confissão judaica, e não cristã, dos Terapeutas. Mas, para alguns autores católicos, era mais fácil supor que Fílon, contemporâneo de Jesus e de Paulo de Tarso, desconhecia ou tinha escrúpulos de utilizar o nome “cristãos”, do que admitir que ele realmente não chegou a tomar conhecimento ou a se interessar pela “nova seita” judaica. Porque, de fato, em toda a obra de Fílon, inexistem menções ao cristianismo. Por outro lado, as aproximações que podem ser feitas entre os Terapeutas e o cristianismo não são mais significativas do que as podem ser feitas com o próprio judaísmo alexandrino, ou com influências neopitagóricas, ou com sabedorias mais antigas existentes no Egito ou vindas do Oriente, sobretudo num ambiente cosmopolita como o de Alexandria no início da era cristã. Sem contar que o vocabulário grego empregado por Fílon com frequência nos lembra os estoicos ou nos remete a outras correntes da filosofia grega.

Pois bem, a vida solitária, silenciosa e estudiosa dos Terapeutas dentro de seus “monastérios” individuais durava seis dias. Segundo a oposição bíblica entre luz e trevas e uma analogia de natureza, de dia, ou enquanto havia luz, dedicavam-se unicamente aos cuidados com o espírito, e somente à noite, após o pôr do sol, cuidavam do corpo. Isto é, praticavam jejuns diários, embora alguns passassem três ou mesmo seis dias sem se alimentar. No sétimo dia — porque 7 e 7x7 eram para eles números sagrados — se reuniam numa assembléia (κοινὸν σύλλογον) para “discutir” questões religiosas. Na verdade a reunião era bastante ritualizada e aparentemente doutrinária: sentavam-se em ordem por idade em poses solenes, o mais antigo e versado na doutrina se levantava e começava a falar em tom grave, sem procurar convencer, persuadir ou agradar os ouvidos como um vulgar orador, Fílon faz questão de salientar, mas de modo a que seu discurso penetrasse com clareza no espírito dos ouvintes; os outros escutavam em silêncio e manifestavam sua aprovação com pequenos sinais, piscadelas ou acenos de cabeça. O santuário comum (κοινὸν σεμνεῖον) dispunha de duas salas contíguas separadas por uma meia parede, de um lado ficavam as mulheres e, do outro, os homens. O autor nota, então, como numa explicação para leitores chocados ou incrédulos, que às mulheres que abraçavam o mesmo modo de vida, que compartilhavam o mesmo zelo, ardor (ζῆλος) e o mesmo propósito (προαίρεσις) era permitido assistir a esses discursos. A mureta, diz Fílon, preservava respeitosamente o pudor (αἰδώς) que convém à natureza das mulheres (τοῦ τε τὴν πρέπουσαν αἰδῶ τῇ γυναικείᾳ φύσει διατηρεῖσθαι) (§36). Ou seja, elas não podiam ver ou serem vistas, mas podiam ouvir. E acrescenta logo em seguida que o autocontrole (ἐγκράτεια) costuma ser a base de suas almas, sobre a qual edificam todas as outras virtudes.

Havia uma outra reunião na noite do sétimo dia que eles julgavam a mais santa e a mais solene, digna de uma celebração especial : “depois dos cuidados com a alma, eles celebram o corpo, tratado por eles como uma besta de carga da qual suspendessem por um tempo a labuta” (§36) Durante esse jantar, porém, eles não comiam nada demais: só pão salgado e um pouco de hissopo (hyssopus officinalis, erva aromática e medicinal), porque em tudo eram moderados. Mas parece que Fílon deseja destacar que, apesar das privações a que submetiam seus corpos, apesar das dualidades corpo/alma, trevas/luz, impuro/puro, o desprezo dos Terapeutas pelos prazeres sensuais não tinha uma conotação mórbida. O ascetismo não era praticado pelo viés da ideia de sofrimento, como será o caso no cristianismo, mas como um trabalho rigoroso sobre o corpo (o boi que puxa o arado), a fim de potencializar o trabalho espiritual (uma santa lavoura intelectual). E eles tinham lá seus prazeres, decerto tão mais elevados do que os das pessoas comuns que podiam parecer risíveis. Por isso, antes de descrever o grande ritual festivo que tinha lugar na comunidade a cada 49 dias (7 x 7), Fílon sente a necessidade de criticar a instituição e a decadência luxuriosa dos banquetes greco-romanos, a fim de fazer sobressair a santa simplicidade do symposium dos Terapeutas. Assim, após moralizar sobre a embriaguez e toda espécie de excessos ou crimes (como a pederastia) que ocorrem nos banquetes dos gentios, e de fazer a crítica moral dos banquetes literários dos filósofos — afinal, conclui Fílon, em seu diálogo, Platão pouco trata da espécie de amor mais elevada, a maior parte do tempo dedica-se a essa espécie de paixão contra a natureza que é o costume da pederastia para um judeu — ele começa a descrever, como um autêntico banquete de filósofos inspirados pela fé de Moisés, a celebração mais importante da comunidade, aquela que ocorre no quinquagésimo dia — cinquenta também era para eles um número sagrado, pois engendrado pela força do triângulo retângulo (ângulo superior de 50°) que é a força de criação do universo.

Nesse dia sagrado os Terapeutas, que possuíam apenas duas mudas de roupas, vestiam suas túnicas de linho branco, “endossando na alegria uma gravidade profunda” (§66). Ao sinal de um dos escolhidos para oficiante da cerimônia, se preparavam para passar à mesa em fila, ordenadamente, erguendo os olhos e as mãos para o alto suplicando a Deus para que tivessem um “festim intelectual”. Após essa reza, os mais antigos tomavam seus lugares à mesa. E, mais uma vez, Fílon sabe ser digno de nota, inclusive face às fratrias dos banquetes romanos: as mulheres tomavam parte do banquete. Desta vez ele dirá delas que são “em sua maioria virgens idosas (ὧν πλεῖσται γηραιαὶ παρθένοι) cuja castidade (ἅγνευμα), ao contrário das sacerdotisas gregas, não era compulsória, “por necessidade”, mas voluntária, portanto, de espécie mais elevada. No caso das Terapeutrides, trata-se de uma obediência “à atração e ao desejo de sabedoria, que as impele a abraçar uma vida solitária. Indiferentes aos prazeres do corpo, desejam, não uma progênie mortal, mas imortal, que apenas a alma enamorada de Deus (ἡ θεοφιλὴς ψυχή) pode alcançar por si mesma, fecundada pelos raios intelectuais semeados pelo Pai, (σπείραντος εἰς αὐτὴν ἀκτῖνας νοητὰς τοῦ πατρός), que lhe manifestam os ensinamentos da sabedoria (αἷς δυνήσεται θεωρεῖν τὰ σοφίας δόγματα)” (§68)

Reclinados sobre simples esteiras de papiro, os homens à direita e as mulheres à esquerda, “eles relaxavam um pouco a sua rigidez espartana habitual; mas eles sempre observam em tudo uma nobre frugalidade e desdenham os charmes da volúpia.” (§69) Não são servidos por escravos porque estes inexistem entre eles, sendo a escravidão considerada contra a natureza. Pois “a natureza nos engendrou a todos livres; as injustiças e as avarezas de alguns homens, que buscavam estabelecer a desigualdade, fonte de todos os males, fizeram os mais fracos se curvarem sob jugo dos mais fortes.” (§70) São os melhores entre os membros mais jovens da comunidade que servem os mais velhos, ficando atrás deles, não como escravos, insiste Fílon, mas como filhos felizes e diligentes que servem seus pais e suas mães, numa atmosfera abençoada de grande família. E prevenindo seus leitores do escárnio, Fílon revela que em seus banquetes os Terapeutas não bebem vinho, mas água, água límpida e fria para todos, ou morna, para os mais idosos e sensíveis. A comida é também a mais simples: exclusivamente vegetariana (sem sangue) e à base de pão com sal e hissopo. Durante o banquete alguém propõem uma questão religiosa tirada das Escrituras e eles a discutem tranquilamente sob a égide de um presidente eleito para a ocasião. Ao final dos discursos, o presidente entoa um hino a Deus de sua composição ou tirado da tradição do grupo. Depois outros fazem o mesmo, e as vozes dos homens e das mulheres em coro entoam refrões. Só então eles consomem o banquete, havendo em outra sala uma mesa votiva com pão ázimo.

Depois do jantar, eles começavam a “vigília sagrada” (παννυχίς) isto é, passavam a noite toda cantando e dançando até o sol raiar segundo um rito preciso: primeiro os dois coros, de homens e de mulheres, cantavam separadamente em alternância e permaneciam separados, executando uma dança codificada. Apenas no final, como num clímax dionisíaco (a comparação é feita por Fílon), “ébrios do amor de Deus”, eles se misturavam cantando e dançando. Pois, o final da cerimônia contava com um componente dramático que representava a passagem do capítulo XV do Êxodo, às vezes chamada Canção do Mar, que alude ao entusiasmo que se apossou de Moisés, de Miriam e de todo povo diante do milagre da abertura do Mar Vermelho, quanto todos formaram um só coro. Segundo as Escrituras: Moisés e os filhos de Israel cantam louvores a Deus e sua irmã, a profetisa Miriam, pega seu adufe e canta também para a glória de Deus, fazendo-se seguir pelas outras mulheres, igualmente munidas de adufes. Ou, como descreve Fílon: os homens são guiados por Moisés, o profeta, e as mulheres por Miriam, a profetisa. (§ 87) Assim, entre os Terapeutas, as Terapeutrides cantavam e dançavam, como Miriam, em meio a seus homólogos seguidores de Moisés, todos presas de entusiasmo. Então, ao raiar do dia saíam do santuário comum para fazer uma oração com os braços erguidos virados para o sol nascente e retornavam aos seus “monastérios” para recomeçar sua rotina contemplativa.

E Fílon encerra seu texto, pois era tudo que ele tinha a dizer sobre os Terapeutas que se dedicam à contemplação da natureza (θεωρία φύσεως). Mais uma vez, aqui é preciso fazer presente o sentido em que Fílon utiliza o termo “natureza” (physis), qual seja, designando a ordem real e verdadeira estabelecida por Deus na criação, à exclusão de todo erro e falsidade, e que não concerne apenas aos fenômenos que nós chamamos de físicos, mas também à esfera moral e intelectual, à alma (psyché). É por isso que eles os declara cidadãos do céu e do cosmos (οὐρανοῦ μὲν καὶ κόσμου πολῖται), porque suas virtudes os tornaram caros “ao Pai e Criador do universo (πατρὶ καὶ ποιητῇ τῶν ὅλων γνησίως συσταθέντες ); e nesse amor eles encontraram a mais digna das recompensas, que ultrapassa todos os dons da fortuna e os conduz ao cúmulo da perfeição (καλοκἀγαθία) e da felicidade (εὐδαιμονία)” (§90).

Sobre as Terapeutrides não sabemos muito mais do que isso, isto é, que elas também faziam parte dessa comunidade de “cidadãos do céu e do cosmos”, que compartilhavam essa mesma devoção ou piedade (εὐσέϐεια), praticando em comum a simplicidade (εὐτέλεια) e a modéstia (ἀτυφία). Fílon tende a acentuar o caráter voluntário dessa adesão feminina, consagram-se à virgindade e ao celibato por si próprias. Apesar de separadas dos homens, aparentemente tinham as mesmas atribuições dentro da comunidade, mas é impossível saber a extensão dessa igualdade. Havia tarefas que lhes eram reservadas? Cumpriam dentro da comunidade tarefas normalmente reservadas às mulheres, como cozinhar e tecer, ou o pouco de que todos precisavam vinha-lhes de fora? Os membros mais antigos e mais versados na doutrina escolhidos para oficiar o shabbat e os presidentes eleitos para comandar os banquetes podiam ser do sexo feminino? Elas podiam tomar a palavra nas discussões doutrinárias ou só ouviam? Também compunham hinos ou apenas os cantavam? Não encontramos respostas em Fílon e não há nada fora do texto de Fílon.

No entanto, podemos perceber que, embora todos ali tivessem se subtraído à “cidadania terrestre”, abandonando a vida civil, ainda assim, homens e mulheres, quando reunidos, mantinham-se separados por gênero segundo características “terrestres”, como o pudor das mulheres, e apenas excepcionalmente se misturavam. Essa separação por gênero dentro de um santuário comum lembra práticas atuais de algumas religiões e do passado de outras, como a católica. Pode ser apenas índice de um patriarcado mais tolerante face a uma espiritualidade que concebe a alma como distinta e superior ao corpo, tendo sido ela engendrada à imagem e semelhança de Deus e sendo ela o único acesso possível ao divino. Uma tolerância muito louvável face aos rebaixamentos sucessivos aos quais as mulheres estarão sujeitas na tradição cristã por parte dos doutores da Igreja, apesar da abolição de todas as diferenças entres os seguidores Jesus ter sido proclamada pelo próprio. Agostinho de Hipona, por exemplo, empenhou-se com um zelo suspeito na tarefa de negar às mulheres, pela natureza mesma de seus corpos que participam de mais impurezas, uma alma do mesmo calibre que a do homem. Em suma, elas estão mais distantes do sagrado e bem poucas atingem um nível de purificação espiritual que torne o convívio com elas algo suportável e ainda menos desejável.

Ainda assim, entre os Terapeutas, a convivência era muito distinta e ritualizada, e uma vez que as funções corpóreas eram controladas ao máximo por todos, tem-se a impressão de que se comunicavam periodicamente apenas as almas, presentes em corpos domesticados e purificados por elas. Depois, a imagem escolhida por Fílon ao dizer que durante o banquete os membros mais jovens eram como filhos felizes e diligentes daqueles pais e mães, além da presença mesma das mulheres na celebração, dá a pensar que naquela família espiritual ambos os gêneros eram igualmente respeitados, precisamente como pais e mães espirituais.

No ápice do symposium ascético e místico do quinquagésimo dia, quando os homens representam os seguidores de Moisés e as mulheres de Miriam e, como eles diante do Mar Vermelho transfigurado, são arrebatados por uma manifestação divina, todos se misturam para se fundirem num só coro de louvor a Deus. Essa união mística dos gêneros se faz então sob o signo da fraternidade: Moisés e Miriam são irmãos, além disso Miriam não é uma mulher comum, é uma profetisa. Foi ela quem anunciou que sua mãe teria um filho que libertaria o seu povo, foi ela quem vigiou Moisés sendo levado pelas águas do Jordão, foi ela quem propiciou à mãe tornar-se a ama de leite do próprio filho, enfim, quem sempre esteve ao lado de seu irmão. Mas quem há de negar que Moisés seja “o” patriarca escolhido por Deus?

Fílon consacrou dois tratados à Vida de Moisés, em nenhum dos dois aparece sequer o nome Miriam, nem mesmo quando se refere ao episódio do Mar Vermelho; quando é preciso, refere-se a ela apenas como “a irmã” de Moisés. Mas o mesmo se passa com Araão, referido apenas como “o irmão”, pois trata-se de exaltar o grande homem que foi Moisés em seus quatro aspectos: rei, legislador, ministro do culto e profeta. Na Vida de Moisés de Fílon, além de topônimos, praticamente o único nome próprio é o de Moisés, quando muito daqueles que ele enfrentou com a sua proverbial sabedoria. Contudo, chama a atenção, no Livro II, a explicação da revelação a Moisés da sacralidade do número sete e de como o sétimo dia tornou-se um dia consagrado, o dia do shabbat. Pois a pureza do sete adviria do fato de ele ser um dia “sem mãe”, engendrado apenas pelo pai, sem a propagação de semente alguma e sem concepção materna. E Moisés viu que isso era uma coisa muito bonita e muito pura, (mais uma vez: ) “sem mãe”, que não participava de corrupção alguma. Adicionalmente ele descobriu também que era o dia do aniversário do mundo, quando se celebra uma festa no céu e uma festa na terra e tudo se alegra.[4] Vemos que aqui não é tanto a mulher como gênero, mas o próprio “princípio feminino”, sua participação na criação que é descartada. A mulher, ou o “feminino”, é um agente de corrupção, não pode estar presente no momento de maior pureza: a criação do mundo por um deus que é Pai.

Além disso, não é justamente a propósito do divórcio de Moisés, por um comentário feito em voz baixa a seu irmão Araão, que Miriam é punida por Deus? (Números, 12:1) E o que ela havia dito? Algo contra o fato de Moisés ter-se divorciado e tomado uma nova esposa “etíope”, Séforah, a madianita. A resposta de Deus foi bem clara e tão cruel que o próprio Moisés intercedeu para salvar sua irmã.

O Senhor desceu numa coluna de nuvem e parou à entrada do tabernáculo. Chamou a Araão e a Miriam, e ambos saíram.

E disse: escutai minhas palavras: se entre vós houver profetas do Senhor, lhe aparecerei em visão e lhe falarei em sonho.

Não é assim o meu servo Moisés; ele é fiel em toda a minha casa.

Com ele falo boca a boca ( ou cara a cara); em uma visão e não em enigmas, e ele contempla a imagem do Senhor. Então por que você não teve medo de falar contra o meu servo Moisés?

A ira do Senhor se acendeu contra eles, e Ele se retirou.

Por ter de alguma forma ousado desafiar a autoridade de Moisés, dizendo algo que só Araão e Deus ouviram, Miriam foi punida com a “lepra”[5] e banida da comunidade. Sob a instância de Moisés, Deus concedeu que Miriam retornasse, após sete dias, purificada e curada; e todos esperaram por ela para que pudessem avançar em sua jornada pelo deserto. Outra informação interessante que encontramos nos comentários da Torah é que Miriam já teria uma idade avançada no episódio do Canto do Mar, estimada em 68 anos, o que não faria dela uma “virgem idosa”, porque consta nas Escritura que fora casada, mas confirma uma maior dignidade da mulher idosa, pós-climatério, da matrona ou matriarca, num sentido restrito de poder (arché). Porque é apenas nessa passagem do Gênesis que ela é chamada profetisa. A milagrosa travessia do Mar Vermelho representava, particularmente para Miriam, um momento de grande exaltação, enfim sua profecia de menina se cumpria: Moisés libertara os hebreus do Egito! E é justamente nesse momento de entusiasmo, quando ela entoa seu canto de louvor a Yhvh, que ela é dita “há-Naviá”, profetisa. Sendo esta a primeira vez que o título é concedido a uma mulher nas Escrituras, mesmo tendo havido outras mulheres visionárias antes dela, como Sarah. O profeta Miqueias, que se refere à tríade Moisés-Araão-Miriam como enviada por Deus para libertar seu povo do cativeiro (Miqueias, 6:4), teria afirmado, segundo um comentário da Torah dessa mesma passagem em hebreu, que “Miriam ensinou às mulheres”. Não resta dúvida, porém, de que, ao lado de Moisés e Aarão, ela foi uma figura chave durante o cativeiro e a fuga do Egito, circunstâncias nas quais a tradição rabínica reconhece às mulheres um papel fundamental.

(Aaron, Miriam, Moses portraits, Rijksmuseum.nl ) Um comentário da Torah do Dr. Hacham Isaac S. D. Sassoon questiona a noção de irmandande entre os chamados os “Três Pastores de Israel” ou os “Três Patronos de Israel” — porque talvez o termo hebreu não significasse nascidos da mesma mãe, mas “parentes”, isto é, que pertenciam ao mesmo clã — querendo frisar a pouca importância da cosanguinidade; o rabi interpreta Miriam como uma liderança entre as mulheres.

Contudo, nunca é questão de igualdade entre homens e mulheres, e, como vimos acima, segundo o verbo (logós) de Deus, nem mesmo Miriam pode pretender equiparar-se a Moisés. Aliás, Araão, que também havia falado contra o casamento do irmão, foi repreendido, mas não punido como Miriam. Ou seja, a dignidade da mulher, por mais elevada que seja, está situada abaixo da do homem, nenhuma matriarca é superior ao patriarca. Será que as especulações e as interpretações alegóricas das Escrituras feitas pelos Terapeutas incluíam deslocamentos simbólicos de categorias tão fundamentalmente consubstanciais aos textos sagrados? É bem verdade que as Escrituras não são avessas à escravidão, desde que ela seja exercida sobre outros povos e não entre os hebreus, entre os quais apenas uma servidão temporária era admitida. E, como vimos, segundo Fílon, os Terapeutas eram totalmente contrários à escravidão, pois todos nascem livres (γὰρ ἐλευθέρους ἅπαντας γεγέννηκεν), e as desigualdades se estabelecem pela violência e debilidade moral de alguns (§70). Ainda assim, nos parece que qualquer entusiasmo feminista pela presença dessas mulheres “filósofas” em meio aos Terapeutas deve ser temperado por ponderações desse tipo.

Outras representações das mulheres na obra de Fílon são bastante estereotipadas: a mulher, como o homem, é virtuosa ou corrompida, casta ou dissoluta, mas a mulher carrega o estigma da sedução; o casamento visa à procriação, etc. Contudo, não conhecemos a obra tão a fundo para tentar formular uma teoria do autor sobre as mulheres em geral. Recordamos-nos alguns exemplos, como no tratado sobre as virtudes, limitado mais especificamente à coragem, em que ele conta, a título ilustrativo, uma história de como os Árabes, convencidos de que seus inimigos tiravam sua força da religião estranha que professavam, tramaram contra os invencíveis guerreiros judeus lhes enviando suas mais belas jovens para seduzirem os mancebos. A vulnerabilidade sensual da juventude deu razão aos Árabes, aos poucos os jovens judeus iam sendo convertidos e desvirtuados por suas amantes. As virgens árabes são descritas como inocentes que foram facilmente enganadas, inclusive pelo seu próprio desejo de ajudar no esforço de guerra. Mas, uma vez que encarnam o papel que lhes foi confiado, o executam com maestria, adornam-se e rebolam para atingirem seus objetivos.[6] Mulheres e homens são corrompidos por maus costumes e aqueles que se consagram a Yhvh são mais puros, não pecam contra seu Deus, como José explica ao repudiar o assédio da mulher de Putifar, estereótipo da mulher adúltera e ardilosa (Gen., 39:9).

Num outro tratado, em que argumenta que “todo homem probo é livre”, Fílon, além de falar longamente sobre os Essênios, cita exemplos famosos de mulheres que foram capazes de sacrificar suas próprias vidas, ou a de seus filhos, em nome da liberdade. Se refere às mulheres dardânias (povo da Anatólia) que, capturadas pelo exército de Alexandre o Grande, afogaram seus filhos nas águas mais profundas do rio, para que não conhecessem as misérias da escravidão. Também cita a personagem Polixena, da tragédia Hécuba de Ésquilo, que prefere continuar sendo livre na morte a viver escrava. Pouco antes, ele havia contado a história de um menino espartano que, também capturado por macedônios, recusava-se a cumprir tarefas servis e, embora não passasse de uma criança, percebendo que não tornaria a ser livre, preferiu se matar. E diante desses exemplos ele pergunta: “Imaginamos então que pode haver um amor tão profundo pela liberdade firmemente estabelecido em mulheres e crianças — sendo as primeiras por natureza levianas (φύσει ὀλιγόφρονα, mais exatamente: pouco inteligentes) e, as outras, de uma idade que é facilmente pervertida e sujeita a tropeçar — de modo que, para não serem privadas dela, alegremente procedem da morte à imortalidade, mas que aqueles homens que provaram da sabedoria pura não são de uma só vez completamente livres, carregando em si mesmos, como fazem, uma espécie de fonte perpétua da felicidade, ou seja, virtude, que nenhum poder planejador ou hostil jamais foi capaz de dissolver, uma vez que possui a herança eterna de autoridade e poder soberano?”[7]

Sem dúvida uma Therapeutrís estaria isenta de todos os pecados das mulheres comuns e conseguia de alguma forma expandir sua “pouca inteligência” (oligóphron) para tornar-se uma filósofa da comunidade de elite do lago Mareótis. Quanto a saber até que ponto as impurezas atribuídas à natureza feminina pelo judaísmo, como a presença do sangue menstrual, tinham importância para os Terapeutas e se representavam diferenças significativas para eles, nos faltam os meios. O que percebemos é que a visão de que em relação à alma, ao intelecto enquanto separável dos sentidos corpóreos, isto é, de que em relação a sua porção divina, homens e mulheres são potencialmente iguais, é a forma como Fílon, apesar de seus próprios preconceitos, entende e explica a presença das mulheres entre os Terapeutas.

*

Mônica Costa Netto

Rio de Janeiro, 11/ 2020

Obras de Fílon de Alexandria citadas:

De vita contemplativa

Quaestiones in Genesim

Quod omnis probus liber sit

De vita Mosis I / II

De virtutibus

* * *

[1] Também chamada Guerra de Kitos — uma corruptela do nome do general romano, Lusius Quietus, que comandou a repressão.

[2] As citações do De Vita contemplativa feitas aqui contêm a indicação do parágrafo de que foram extraídas entre parêntesis ao fim da citação. As referências das demais citações são dadas em nota. As traduções oferecidas são uma síntese, feita por mim, do texto original em grego antigo e diversas traduções consultadas online.

[3] C.f. Quaestiones in Genesim, IV, 47.

[4] De vita Mosis, II, §210.

[5] O que é comumente traduzido por “lepra” no Antigo Testamento, na realidade é um termo, “tzara’ath”, com uma significação mais ampla que designa uma mácula, uma impureza, geralmente tida por uma maldição divina. Ao mesmo tempo que, por ser dito atingir a pele sob forma de manchas brancas, é associado à lepra, também pode ter outras manifestações e antingir casas, roupas e outros objetos, não apenas as pessoas.

[6] De Virtutibus, VII, §34.

[7] Quod omnis probus liber sit, §117.

--

--

Monica Costa Netto

Uma, talvez estranha, miscelânea de textos concluídos.