Monica Costa Netto
11 min readMay 22, 2024

O que não representar não representa e a camponesa do Quadrado Vermelho de Malevich

Pesquisando sobre o suprematismo para a tradução de um livro de estética, surpreendeu-me a descoberta de que o famoso quadro de Kasimir Malevich, conhecido como “Quadrado vermelho”, tem ainda um outro título original atribuído pelo artista: Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões.

A ironia vanguardista me fez rir: obviamente o “realismo pictórico” do título não tem nada a ver com o que se entendia e se costuma ainda entender por essa noção. Todavia, em seus escritos sobre o suprematismo, Malevich tratou de teorizar, ou tentou fazê-lo, o novo realismo de um mundo sem objetos a que sua proposta revolucionária se referia. Por isso, o que mais me chamou a atenção foi a “camponesa”. Afinal, se o título não diz que o quadrilátero vermelho sobre fundo branco é a representação — “realista”, pictórica, bidimensional — de uma camponesa, pois não há como falar de representação no contexto suprematista, o que ele diz? Que relação o nome “camponesa” estabelece com o quadrilátero vermelho pintado no quadro? Tais foram as perguntas que me fiz, sem falsa ingenuidade. Pois saber de antemão que o abstracionismo suprematista se liga a certo simbolismo, sem reflexão, não garante nenhuma compreensão real da obra. E, instigada pela descoberta do título, apesar de só ter acesso a reproduções, estava me dispondo a me aproximar mais dela. Isto é, ir além do que eu já sabia e tinha em mente: o registro de uma imagem associado a um movimento da história da arte. Tratava-se então de entender melhor seu significado artístico, e a camponesa que sempre esteve ali, nesse título conceitual e espirituoso — Quadrado preto suprematista e Quadrado branco sobre fundo branco são os títulos mais sóbrios das outras duas obras da série monocromática — me chamava a atenção.

A primeira coisa que me veio à mente com relação a essa camponesa-quadrada-vermelha foi, reconheço, o contexto revolucionário. Mesmo precedendo de alguns anos a Revolução de outubro (1917), a cor vermelha do quadro é, de fato, a mesma da bandeira bolchevique, o partido da maioria que, há mais de uma década, apoiava as revoltas camponesas contra o regime czarista. A bandeira bolchevique era vermelha porque a dos revolucionários franceses de 1789 também o fora, e porque, segundo reza a lenda partidária, o vermelho simboliza o sangue dos povos que lutaram pela liberdade.

Malevich, Camponesa com balde, 1911

Mas quanto mais longe se vai nessa interpretação, menos ela parece convincente face à postura artística manifesta de Malevich naquele tempo. Pois, se como artista ele tinha bem mais que uma preocupação, mas uma verdadeira práxis revolucionária, esta estava primeira e intencionalmente voltada para o domínio artístico. E a exposição Zero. Dez de 1915, em que o suprematismo foi lançado, sem dúvida, em termos artísticos, foi um acontecimento. É verdade que, mais tarde, Malevich diria sobre essas obras, que o quadrado vermelho simbolizava a revolução, como o negro a economia e o branco a ação pura. Mas tanto “revolução”, quanto “economia” e “ação pura”, ainda que tenham uma ressonância política, no contexto da reflexão teórica a que Malevich costumava se dedicar, são termos que remetem à arte, à arte pictórica, e mais especificamente à dinâmica artística que ele experienciava então: o suprematismo. Dito isto, é claro que se o suprematismo pretendia suscitar não só uma nova relação com a obra de arte, mas através dela, com o próprio mundo, transformar a existência, essa práxis artística era política.

Na busca por mais informações sobre a obra, entretanto, me deparei com a referência bastante disseminada na Internet a um artigo, de 2003, de uma crítica de arte do New York Times, Grace Glueck, intitulado “Mother Russia Nurtured Her Modern Rebels, Too” [A Mãe Rússia também nutriu seus rebeldes modernos]. Nele, a autora sustenta que a camponesa do título, um “emblema da Rússia”, consiste numa transposição simbólica da realidade tridimensional para uma bidimensionalidade não-objetiva. Um conceito ao qual, segundo Glueck, Malevich não chegou tendo a vanguarda francesa como influência, mas os ícones religiosos. Isto é, “a mais tradicional forma da arte russa”, na qual, como ela assinala de passagem, símbolos e cores têm significados para a fé. E isso por que, como ela busca demonstrar no resto do artigo — o qual, na realidade, versa sobre uma exposição intitulada “Origens da vanguarda russa” que estava tendo lugar num museu de Baltimore, e não sobre a obra de Malevich especificamente — , a vanguarda artística russa como um todo havia estabelecido uma relação com a sua tradição artística popular ainda mais profunda do que com as vanguardas da Europa ocidental.

Assim, a crítica norte-americana afirma ao fim de seu artigo que o “impulso da vanguarda russa na arte, juntamente com a rica cultura camponesa que ajudou a alimentá-la, morreu com o estabelecimento do domínio bolchevique” [eu traduzo]. Uma arfimação tão ousada quanto falsa. No que concerne à vanguarda artística, ela foi, ao contrário, muito ativa durante os primeiros anos da Revolução, portanto, não foi o domínio bolchevique que determinou seu fim, mas o subsequente domínio estatal stalinista e a imposição estética do realismo socialista. Quanto aos ícones, ainda que muitos tenham sido vendidos para colecionadores ocidentais, eles continuaram a ser conservados e estudados, no entanto, é verdade, prioritariamente sob seu aspecto artístico e formal. Ou seja, aquele mesmo aspecto que de modo manifesto interessava Malevich, muito mais que o aspecto da ortodoxia religiosa. Embora saibamos que Malevich também tivesse preocupações espirituais envolvidas em sua pesquisa artística, essas se aproximavam mais do esoterismo, como as de outros artistas das vanguardas modernistas. Quanto à cultura camponesa, naturalmente ela se transformou junto com o campesinato, que foi um dos primeiros motores da Revolução, posto que a “Mãe Rússia” era bastante cruel para com esses seus filhos, levando-os à rebelião armada apoiada pelos bolcheviques. Além disso, no decorrer do século XX, a rica cultura camponesa medieval tendeu a se transformar e a se desintegrar não somente na Rússia, por causa da revolução bolchevique, mas em todos os países da Europa, em consequência das transformações da produção agrícola e das relações de trabalho no campo, ocorridas tanto no sistema capitalista quanto no soviético.

Malevich, Chaleira suprematista, 1923.

Nos ícones ortodoxos, compreendidos como figurações bidimensionais do divino, a cor vermelha está, com efeito, muito presente. E, no seio do sistema estrito de codificação da confecção dessas peças, ela seria a cor humana por excelência, a cor do manto da paixão do Cristo, do sangue esvaído das figuras pálidas dos mártires, em suma, a cor do sofrimento, do pathos. Mas o que tornaria o pigmento vermelho dos ícones e a ligação deles com a religiosidade dos camponeses relevante para a compreensão do título? Como a camponesa seria um “emblema da Rússia” para Malevich sem a evocação da ruptura com a sua longa tradição de sofrimento numa abstração geométrica que não pretende à representação? Ou ainda, o que tornaria a tradição da “Mãe Rússia” mais determinante do que a referência às aspirações revolucionárias do tempo do artista? A questão parece ainda mais instigante quando tomamos conhecimento do escândalo provocado pelo Quadrado negro, durante a exposição de 1915, por sua posição: pendurado num ângulo da sala, ao alto, ele ocupava precisamente o mesmo lugar dos ícones religiosos nas casas russas. E mais, quando sabemos também que o próprio Malevich o teria chamado de “ícone do nosso tempo”. Escândalo que, em 2015, reverberou no discurso de um influente patriarca ortodoxo russo que, se aproveitando da atualidade de um novo escândalo no aniversário de 100 da obra, se referiu a Malevich como a um homem de alma sombria como seu quadro, o qual refletiria não somente seu autor, mas o “espírito da época”. E para entender o que aconteceu com a “Mãe Rússia” de lá para cá, recomenda como remédio a veneração da Nossa Senhora de Vladimir, o célebre ícone bizantino anônimo do século XII.[1]

A única fotografia que restou da Última Exposição de Quadros Futuristas 0.10 (Petrogrado, 1915), justamente a das obras suprematistas de Malevich.

Malevich, cujo pai era diretor de uma usina de açúcar de beterraba, foi criado no campo e chegou a cursar uma escola agrícola, o campesinato lhe era familiar. E quando começou a pintar como autodidata, de maneira ingenuamente realista, seus temas eram as paisagens campestres e os camponeses que o rodeavam. Mais tarde, quando foi estudar em Moscou, tomou conhecimento das vanguardas europeias — impressionismo, pontilhismo, cubismo, etc. — e também pintou vários camponeses. Nessas obras, a cor vermelha está igualmente muito presente. Por volta dos anos 1912, quando Malevich chegava à elaboração de seu “abstracionismo geométrico”, que o levaria ao suprematismo, esteve bastante próximo de Natalia Goncharova e Mikhail Larionov. Aliás, esses artistas, que realizaram diversas obras nas quais se apropriavam elementos da cultura popular russa, também são mencionados por Glueck em seu artigo. Mas, além de se interessarem pelas gravuras que ilustravam contos folclóricos e outras publicações populares, o tradicional lubok, em que a cor vermelha tem igualmente uma presença marcante, tais artistas elaboravam uma pesquisa formal que se expressava teoricamente nos manifestos típicos das vanguardas. De modo que, com a colaboração de Malevich, publicaram em 1913 um manifesto raionista, ou raísta (de raios), em que o entrecruzamento diagonal de raios de luz é apresentado como elemento fundamental para a composição da obra, atendendo a certas exigências que os artistas se faziam então, como romper com a mímesis naturalista, com a representação como um todo e com a perspectiva horizontal, para atingir o cerne da arte pictórica em si mesma, libertada de sua referência ao mundo dos objetos. A luz, assim, já não está a serviço da representação, não é usada para realçar os objetos como no pontilhismo, mas, aliada à cor e ao movimento, é convocada para a construção de um “espaço absoluto”, sem objetos, em que tudo é apenas movimento, luz e cor.

O fato de que os artistas da vanguarda russa mativessem laços estreitos com a sua tradição artística e não estivessem apenas voltados para as novidades de Paris, como assinala a crítica norte-americana, não significa que o interesse deles pela tradição fosse também fiel à sua simbologia tradicional. Muito pelo contrário, a inovação artística era por eles encarada com preocupações moderníssimas que exigiam a elaboração de um pensamento estético. Em todo caso, as marcas mais evidentes das relações que a dinâmica suprematista tecia com a iconografia tradicional dizem respeito a aspectos formais. Por exemplo, a tendência dos ícones russos a apresentarem uma abstração estilizada de seus elementos no plano, sem evolução para a figuração realista, sem submissão à perspectiva canônica. Provavelmente também se interessavam pelo o tratamento das cores e pela iluminação. Entretanto, o sensível, a sensibilidade, o sentimento, o feeling suprematista, em princípio, pouco tem a ver com o pathos da Paixão de Cristo. Da mesma forma como, ainda que por seus anseios de liberdade, transformação, revolução, o sensível de Malevich pareça mais próximo do pathos revolucionário do seu tempo e lugar, ele se apresenta antes de mais nada como uma potência de desobjetificação, um curto-cirtuito da relação ao objeto no que concerne à representação pictórica. Sem excluir que essa atitude artística, digamos, anti-metafísica ou ultra-metafísica, possa ser estendida ao mundo todo, ao conjunto da existência humana, isto é, ser universalizável. Assim pensava o entusiasta El Lissitzky em 1920:

“(…) e se o comunismo que colocou o trabalho humano no trono e o suprematismo que ergueu a flâmula quadrada da criatividade agora marcham juntos, nas fases posteriores do desenvolvimento, porém, é o comunismo que terá de ficar para trás porque o suprematismo — que abrange a totalidade da fenômenos da vida — afastará todos do domínio do trabalho e do domínio dos sentidos embriagados. Libertará todos aqueles envolvidos na atividade criativa e fará do mundo um verdadeiro modelo de perfeição. Este é o modelo que esperamos de Kasimir Malevich.

DEPOIS DO ANTIGO TESTAMENTO VEIO O NOVO — DEPOIS DO NOVO O COMUNISTA — E DEPOIS DO COMUNISTA SEGUE-SE FINALMENTE O TESTAMENTO DO SUPREMATISMO.”

[Suprematism in World Reconstruction (1920), eu traduzo do inglês, as maíusculas do final são do original]

Apesar de El Lissitzky de certa forma confirmar que a camponesa-quadrada-vermelha, para além da revolução bolchevique, simboliza a revolução da criatividade, digamos que talvez seja um pouco isso que os ícones fazem, tendendo à estilização e à abstração. Isto é, eles pretendem subtrair a figura do divino da assimilação à tridimensionalidade decaída, sensual e profana dos ídolos, ou ao mundo material, objetificado. O ícone sagrado, na concepção ortodoxa, de modo algum representa Deus realmente, em si irrepresentável. A imagem é uma aproximação, uma figuração que se destina à veneração pelo imediato reconhecimento do simbolizado (a ressureição, a vida), não pela representação em si (a figura sem vida, “morta”, do quadro). Um ícone também não pode expressar a divindade, ele apenas a simboliza, seja pela cor dourada, por auréolas, ou outro elemento, com tanto que ele seja imediatamente reconhecível.

Sem dúvida, essa forma cristã de desobjetificação e sua contrapartida: a sacralização do ícone, estão totalmente ausentes do pensamento suprematista. Malevitch quer seu quadrado vermelho vivo, vibrante, mais vivo do que qualquer representação — mesmo cubista, como ele mesmo já havia realizado — de uma camponesa que desse a impressão de movimento. O realismo pictórico suprematista pode bem ser a transposição simbólica e bidimensional da camponesa como “emblema da Rússia” revolucionária, mas também pode ser um símbolo da revolução pictórica pela qual passava o próprio artista em seu processo relativamente ao seu tema de predileção: camponeses. Contudo, não adianta falar em transposição simbólica, fazendo justiça aos escritos de Malevich sobre o suprematismo e seu vocabulário, e interpretar esse simbolismo em termos de representação. Em todo caso, a camponesa do título do Quadrado Vermelho não diz que ali está representada uma camponesa como metonímia da tradição da “Mãe Rússia”. Descobrir e fazer ver no Ocidente que os artistas da Vanguarda russa tinham uma forte relação com a tradição artística eslava, finalmente, corresponde mais a tirar o véu nombrilista e eurocêntrico de certa História da Arte. Para nós, brasileiros, é evidente que nossos artistas modernistas, e nossa vanguarda antropofágica, também não tinham olhos só para Paris. Mas o que ainda melhor esclarece os quadrados monocromáticos suprematistas parece ser o próprio suprematismo e seu pertencimento a um projeto estético e revolucionário de transformação da vida.

***

[1] C.f. o artigo de Aleksandra Shatskikh, “Inscribed Vandalism: The Black Square at One Hundred”, in e-flux Journal, n°85, 10/2017. Neste artigo a historiadora da arte e especialista da Vanguarda russa passa em revista crítica o anúncio oficial da galeria pública russa, em 2015, da descoberta por raio X de uma inscrição feita a lápis na margem branca do Quadrado negro, sumariamente atribuída a Malevich, e suas consequências nefastas para a compreensão da obra e do artista, argumentando que se trataria antes de um ato de vandalismo. O fragmento de inscrição encontrado, cuja longa história de sua origem não cabe detalhar aqui, da forma descuidada como o anúncio foi feito, valeu a Malevich a decepção ocidental, expressa em artigos de imprensa, de ser dado a piadas racistas. https://www.e-flux.com/journal/85/155475/inscribed-vandalism-the-black-square-at-one-hundred/

Monica Costa Netto

Uma, talvez estranha, miscelânea de textos concluídos.