Nusch Éluard, a musa compartilhada

Monica Costa Netto
8 min readAug 4, 2023
Nusch Éluard por Man Ray, 1935

Estava vendo fotos da bela reedição concebida por Seghers, em 1957, de Corps mémorable (“Corpo memorável”) — o livro publicado por Paul Éluard sob pseudônimo, dez anos antes, para celebrar a esposa morta — e fui ler na Wikipédia o artigo sobre Nusch Éluard, em francês. A certa altura, me deparo com a seguinte observação: “o movimento surrealista ocultou muito o papel das mulheres. No início, ele era composto exclusivamente de homens, as mulheres estavam presentes apenas como musas ou amantes”(eu traduzo). De fato, a história de como Paul Éluard, na companhia de René Char, à procura de prostitutas prontas a satisfazer fantasias a três, teria encontrado a jovem Nusch esfomeada pelas ruas de Paris num dia de folga não remunerada, tem origem numa atitude que se queria libertária em relação à sexualidade e às relações amorosas, mas que, hoje, pelo menos para mim, perdeu todo possível encanto, mesmo como atitute de época. Não se trata , de minha parte, de moralismo, mesmo porque não imagino Éluard como um abusador, ele parece ter sido um sujeito legal, amigo. Sem dúvida, as relações e as dinâmicas sociais eram outras, mas havia ainda muito sexismo envolvido nas transgressões anti-burguesas dos artistas das vanguardas do início do século XX . Como quer que seja, a descoberta de algumas colagens, produzidas de forma efêmera em guisa de arteterapia durante um período depressivo e que foram equivocadamente atribuídas ao marido poeta, não me parece fazer de Nusch uma artista tolhida pelos homens do grupo. Qual teria sido o seu papel ocultado?

Desenho de Picasso para a capa de Corps Mémorable, 1957.

Nusch, nascida Maria Benz em 1906, era de uma modesta família circense da Alsácia, de origem germânica. Dizem que ainda muito nova foi mandada para Berlim para fazer carreira nos teatros da capital, mas as coisas não deram muito certo e ela teria posado para fotografias eróticas de cartão postal e eventualmente se prostituído. Mais tarde, nos anos 30, em Paris, quando conheceu Éluard, trabalhava como figurante num show de terror espírita no teatro do Grand-Guignol e, eventualmente, também se prostituía. Éluard, a essa altura, tem uns trinta anos e é pai da filha de Gala que, por sua vez, abandonou os dois para ir viver com Dalí. Embora o francês continue completamente vidrado na sua ex-mulher russa, acaba de certa forma adotando a, assim chamada por ele, “boneca patética” como companheira. Quatro anos depois, uma vez Nusch adaptada ao círculo surrealista e preocupado com o futuro da moça, casa-se com ela. Mas, justamente, nesse círculo, a abertura do casal Éluard era total. Nusch foi modelo para Man Ray, que transava com Éluard, e também posou para Picasso, com quem ela transava; Man Ray fazia fotos de Nusch e Sonia Mossé, que era homossexual, mas ficava com Éluard também, e por aí vai. São coisas de que se pode tomar conhecimento com facilidade, esse tipo de fofoca artístico-literária costuma ser muito difundido. E como Éluard, assim como outros do grupo, era adepto de certa utopia sexual, a pangamia, sua vida dá muita matéria nesse capítulo, pelo menos até a intervenção moralizadora do PCF depois da guerra.

Um dos muitos retratos de Nusch por Picasso, 1941.
Nusch, Paul Éluard e Picasso, 1937
Nusch por Dora Maar, 1936

Mas, sem ir a fundo, é complicado saber o que é verídico nessas narrativas biográficas que encontramos por aí. Há coisas, no entanto, que soam completamente inverossímeis. Por exemplo, primeiro eu li que Nusch teria começado a fazer as colagens por sugestão de um psicanalista consultado em razão de uma depressão. Ele teria sugerido, em primeiro lugar a escrita de um diário ou algo assim, mas Nusch não se entusiasmou e se voltou para as colagens. Aliás, fato psicanaliticamente interessante talvez: as colagens de Nusch são feitas sobre cartões postais e com imagens de corpos nus. Não têm, contudo, nenhuma semelhança estética com cartões postais eróticos para os quais posou, são colagens de tipo surrealista. Então, retomando, até aí, tudo bem, parece plausível as coisas terem se passado assim. Mas, em outro lugar, dizem que foi Picasso, que não só teria sido seu amante mas uma espécie de confidente (?!) também, o autor da sugestão. É muito difícil, com o que se sabe hoje sobre os relacionamentos do pintor com as mulheres, imaginar Picasso como confidente de uma de suas amantes. Seria mais fácil imaginá-lo como tendo contribuído para a depressão da modelo, como ele teria contribuído para adoecer Dora Maar que Nusch conheceu bem e que, antes da relação com o pintor espanhol, era uma fotógrafa emancipada. Também consta que Picasso, por sua vez, teria declarado que Nusch lhe foi oferecida por Éluard como um presente, que ele não queria aceitar, se bem que Éluard parecesse ofendido. Mas, enfim, são meras suposições encontradas aqui e ali. Talvez alguém já tenha escrito uma biografia muito bem documentada sobre Nusch, meu interesse pelos seus belos olhos e sua condição de corpo memorável, porém, não seria capaz de me levar até ela. Durante sua relativamente curta vida — ela morreu subitamente aos 40 anos, em 1946, de uma hemorragia cerebral — Nusch foi atriz, modelo artístico, uma artista plástica ocasional e uma resistente ocasional durante a guerra também. Mas, tendo Gala tornado-se a musa exclusiva de Dalí, ela ocupou sobretudo o lugar de musa libertina e libertária, para Éluard e seus amigos. Em suma, ela foi Nusch Éluard. E, enquanto tal, contribuiu com sua singularidade própria, inclusive com sua atitude libertária com relação ao corpo e à sexualidade, para o movimento artístico a que passou a pertecer. Diante disso, em que pese a qualidade das cinco colagens assinadas por ela, me parece que para escrever uma outra história em que Nusch fosse, em termos artísticos, uma protagonista (uma árvore?) e não uma bela coadjuvante (uma paisagem, a floresta?) seria preciso reinventar o movimento surrealista.

Nusch sinto sua falta de súbito

É como se a floresta pudesse faltar à árvore

Nunca escrevi poema sem ti

Estou num banho frio

De solidão de miséria

E as palavras têm o peso dos trapos sobre as feridas

E as imagens são avaras e teimosas

E tudo que digo reflete uma ausência

Recebo o presente como um tesouro a marreta

Meu prazer agora é matar o tempo

Estrofe, traduzida por mim, do poema Nusch, do livro publicado em 1949, com um título eloquente, no que diz respeito às orientações do Partido Comunista: Une leçon de morale (“Uma lição de moral”). Com efeito, ao fim da guerra, Éluard, que no passado havia sido mais rebelde e chegou a romper com Partido, aceita o posto de poeta oficial do PCF e se submete às suas diretrizes. Ele assume no prefácio: “Me quis moralista” — naturalmente, ainda contrário a “toda moral resignada”. Assim, vários poemas, que se seguem a algumas reflexões sobre uma estética ética, são divididos em duas partes: “para o mal” e “para o bem”, como posições num combate moral. Trata-se de “aniquilar os sóis negros de doença e miséria, as noites salobras, todas as cloacas da sombra e do acaso, a vista ruim, a cegueira, a destruição, o sangue seco, as tumbas” (eu traduzo). O contexto é de pós-guerra, pós-luto e pós-renúncia a um novo amor desaprovado pelo Partido — considerada muito novinha para o militante cinquentão, a moça, encontrada no mesmo ano da morte da esposa, tinha mais ou menos a mesma idade de Nusch quando ele a conheceu.

Nusch e Paul Éluard por Man Ray, 1939.

*
Ela surgia do homem
E o homem surgia dela
Ela surgia do desejo do homem
De um homem
De mim
E de um outro homem
E talvez também de uma mulher
De várias mulheres desejáveis ideais
E de várias mulheres sem charmes
Surgia das infâncias vagas
Dos mais belos sonhos em espirais coloridas
E das realidades rígidas
Corcundas quebradas brancas e negras

Sonho e realidade a rosa e a roseira
A dor e seus muros ao longo de uma rua calma
A dor aceitável e o prazer possível

*

(Estrofes, traduzidas por mim, do poema "À L'infini" de Corps Mémorable.)

*

Acrescento, como um post scriptum que não se pretende uma moral, mas um esclarecimento, que, do meu ponto de vista, as mulheres não precisam ser protagonistas de história nenhuma para terem valor. Muitos homens, a maioria, obviamente também não o são, embora saibamos a razão de ainda menos mulheres serem protagonistas. Sobretudo, de modo algum quis diminuir Nusch colocando-a no seu lugar histórico de musa. O que me incomoda é a atitude inversa. Pois, se julgo importante que suas colagens sejam reconhecidas como suas [nos anos 1970, um especialista do surrealismo, o norte-americano Timothy Baum, descobriu a assinatura de Nusch nas colagens e desfez o equívoco, lançando o alerta] , por outro lado, o exagero de fazer da autora uma artista plástica ocultada corresponderia antes de mais nada a uma ambição comercial. Contudo, pelo que vi na Internat, o ensaio biográfico de Chantal Vieuille, Nusch, portrait d’une muse du surréalisme (“Nusch, retrato de uma musa do surrealismo”), editora Artelittera, 2010, possivelmente o único estudo mais sério a ela dedicado até hoje, se exalta a musa e a mulher livre, evita fazer de Nusch o que ela não foi. Melhor assim, mas fiquei pensando, com certa melancolia, que não gostaria de ter escrito esse retrato. Há certas biografias que entristecem a imaginação, para mim, a de Nusch faz parte delas. Não por imaginar que, ao cabo, a “jolie Nusch” tenha tido uma vida infeliz, mas porque ela faz parte dessas mulheres-ícones que os tempos das imagens reprodutíveis trouxe consigo. E, pessoalmente, acho ícones imagens imensamente tristes, tristes também me parecem as vidas imobilizada nas suas imagens.

Mas uma coisa é certa, Nusch, a pequena acrobata, foi, desde muito nova, artista e não deixou de ser artista no seio do grupo que a acolheu. Além disso, como ancestral de musas pop como uma Jane Birkin, por exemplo, se ela nunca teve a oportunidade tardia de fazer carreira solo e carregou o nome do marido, Nusch tinha o diferencial de ser a musa de vários artistas ao mesmo tempo, ela foi uma musa compartilhada, encarnando um ideal erótico de todo um movimento artístico, para artistas homens e mulheres, homo, hetero, bi ou pansexuais.

Dora Maar, 1936
Colagens de Nusch
Colagem de Nusch

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Monica Costa Netto

Uma, talvez estranha, miscelânea de textos concluídos.